1 de julho de 2011

Artes Liberais 
A antiga divisão do universo num desenvolvimento objetivo no espaço e no tempo, por um lado, e numa alma que reflete esse desenvolvimento, por outro, já não serve para ponto de partida caso se queira compreender as ciências modernas da natureza. É, antes de tudo, a rede de interligações entre o homem e a natureza o objetivo central da ciência. Werner Heisenberg 
Para o homem moderno é inconcebível sequer levar em consideração a possibilidade de que haja alguma relação entre os astros celestes e a psique humana. Afinal, isto que é chamado de “pura e remota possibilidade” é considerado - pelo homem moderno - como um grande devaneio de apelo saudosista e nostálgico, determinado pela crença corrente de que aquilo que é antigo, pertencente a tempos remotos, já está e sempre estará ultrapassado, visto a evolução a que chegamos. Entretanto, se assim o fosse, de nada adiantaria a experiência e o conhecimento já conquistados pela geração dos nossos antepassados e, desse modo, teríamos sempre que começar do zero, correndo o risco de cometer então os mesmos erros que eles inclusive já cometeram por nós - tal como a criança que, insistentemente, leva choque ao colocar o dedo na tomada, apesar das advertências do papai. 

 Por isto, antes mesmo de criticar a astrologia dizendo que ela é uma ciência antiga que já caiu em desuso, deveríamos rever as nossas noções de “novo”, “velho” e, sobretudo, de “progresso” – ainda mais quando se trata do progresso e da evolução do conhecimento. Afinal, o “novo” não pode significar, unica e exclusivamente, a derrota e a destruição de algo que perdeu a sua validade e que, por isso, se tornou obsoleto, ultrapassado e “velho”. Ao contrário: um conhecimento dito “novo” também ocorre quando está firmemente ancorado no que de melhor o passado já edificou e quando se torna o melhor prolongamento daquelas pedras angulares que pavimentaram o solo onde pode se erguer toda uma cultura. Ou seja: o novo não é somente uma derrota do velho - é também a melhor continuidade do velho. O novo, no melhor das vezes, é uma releitura que expressa uma síntese mais profunda e mais sucinta das sucessivas máscaras com que os fatos foram se apresentando ao longo do tempo e que tornaram o conhecimento tão confuso e difícil. Por isso, um conhecido dito “novo” – e que possa ser considerado autêntico – deve na maior parte das vezes abarcar a imensa massa incompreensível dos fatos, apresentando-a sob uma ótica clara e compreensível, dando-lhe uma luz e um polimento até então inexistentes.

Avaliando o progresso e a evolução do conhecimento sob esse ângulo (1), talvez seja possível compreender a idéia e o valor que estão embutidos na palavra “tradição”, usada inclusive para qualificar um certo grupo de conhecimentos do passado da nossa civilização e a maneira como ele era transmitido e ensinado. A esse conhecimento era dado o nome de Ciência Tradicional. Para compreendê-lo perfeitamente, devemos nos lembrar que a palavra “tradição”, etimologicamente, significa transmissão. E que ele procurava transmitir certas noções de uma maneira em que nunca se perdesse a visão do conjunto – ou de uma maneira em que um novo campo de conhecimento pudesse ser abarcado pelo quê de mais sólido foi construído por outras disciplinas, tal como um tijolo que, de unidade a unidade, vai compondo uma casa. Aliás, o Pensamento ou a Ciência dita Tradicional caracteriza-se sobretudo por esta noção: de uma unidade essencial que determina uma hierarquia e uma ordem que abarca todos os fatos existentes, propondo uma interpretação do homem e do universo de uma maneira em que todos os fatos caóticos e dispersos se encaixem, encontrem o seu devido lugar e a sua devida explicação e façam sentido, eliminando assim o absurdo e a incoerência que geralmente abala e espanta a nossa inteligência.

Neste contexto, não deveria nos espantar o fato de que a astrologia tenha sido a disciplina que coroava o sistema de conhecimentos tradicionais chamado de Artes Liberais, e que pode ser visto como um grandioso sistema pedagógico que, de disciplina em disciplina, se propunha a levar o indivíduo a elaborar a totalidade da experiência de uma maneira em que ela se tornasse compreensível. Na história da cultura ocidental esse sistema existiu, quase sem interrupções, desde a antigüidade até a idade média, se tornando o berço e a fonte de onde nasceram quase todos os conhecimentos mais significativos da nossa cultura, tal como resumimos no quadro que se segue:

AS ARTES LIBERAIS: ( Ciências do Trivium
Gramática: disciplina que levava o indivíduo a perceber a base material em que se constrói o discurso e que lhe dá um corpo ( como, por exemplo, no estudo dos sons das palavras e - ainda em algumas culturas - da imagem das letras), demonstrando dessa maneira o elo existente entre a dimensão física e a dimensão lingüística e simbólica. 
Lógica: disciplina que levava o indivíduo a perceber uma certa exigência que move forçosamente o raciocínio numa direção específica, impulsionado pela necessidade de desenvolver uma síntese cada vez mais abrangente dos fatos e que lhe coloca na condição de participar, em níveis e graus variados, de um plano superior, demonstrando dessa maneira o elo existente entre a dimensão cognitiva e a dimensão metafísica, isto é, entre a inteligência individual e uma certa inteligência universal, o Logos. 
Retórica: disciplina que levava o indivíduo a perceber que há diversas e variadas maneiras de causar uma comoção e uma reflexão no outro, estimulando-o a participar também da experiência do conhecimento, se deparando, assim, com o fato de que a dimensão metafísica deve ser apreendida por cada inteligência em particular, demonstrando dessa maneira o elo existente entre a inteligência particular e a alheia.

AS ARTES LIBERAIS  (Ciências do quadrivium)  
Aritmética: disciplina que levava o indivíduo a perceber não tão somente o número pela sua característica quantitativa visto que, para que as coisas sejam várias e possam ser contadas, elas têm que ser necessariamente uma, isto é, ter unidade, revelando então o caráter essencial e substancial das coisas existentes, a sua estrutura elementar, demonstrando que tudo é o que é por possuir uma “misteriosa” força de unidade e integridade que faz com que as coisas se apresentem e sejam desta maneira - e não de outra. A aritmética era, antes de tudo, um estudo das identidades. 
Geometria: disciplina que levava o indivíduo a perceber como as unidades se distribuem ao longo do espaço e o ocupam, demonstrando que as idéias de proporção (da dimensão espacial) bem como as de perspectiva (da direção espacial) eram desenvolvidas com o fim de estabelecer o equilíbrio e a harmonia espacial. 
Música: disciplina que levava o indivíduo a perceber como as unidades se manifestam ao longo do tempo, isto é, o compasso de duração típico de cada coisa, revelando o ritmo sob o qual tudo se desenvolve, demonstrando que as idéias de melodia e ressonância eram desenvolvidas com o fim de estabelecer o equilíbrio e a harmonia temporal. 
Astrologia: disciplina que levava o indivíduo a perceber o laço existente entre as três noções anteriormente apreendidas, isto é, entre a noção de unidade, espaço e tempo, demonstrando que cada coisa, por ser o que é, se desenvolve ao longo de um tempo e ocupa um certo lugar que lhe são muito peculiares, revelando assim os laços e as relações existentes entre a estrutura elementar particular (o microcosmo) e a estrutura universal (o macrocosmo), permitindo descobrir a unidade dentro da diversidade, a ordem dentro do caos - tudo com o fim de estabelecer, digamos, o equilíbrio e a harmonia existencial. A astrologia era a disciplina que se ocupava com o estudo do significado do céu, enquanto a astronomia tratava somente do aspecto físico e descritivo deste mesmo céu, sem o seu conteúdo simbólico. A astrologia era, antes de tudo, um estudo astronômico sobre o sentido e o significado de como todas as coisas estão arranjadas. A astrologia, pois, não passava de uma astronomia significativa. (2)

Desse modo, podemos perceber que as Artes Liberais não compunham um simples agregado casual de disciplinas, nem mesmo uma combinação engenhosa de elementos díspares juntados tão somente em vista do desenvolvimento pedagógico a que se propunham.
As Artes Liberais compunham um sistema, uma unidade dotada de coesão intrínseca, por mais que historicamente esta unidade se mantivesse velada e não fosse abordada textualmente de maneira explícita, e por mais que o conteúdo de uma disciplina nem sempre demonstrasse claramente a correlação existente com as outras, visto que, ora e meia, uma disciplina se tornava mais valorizada do que as demais, fazendo com que os laços existentes entre elas se tornassem mais tênues. No entanto, tão íntimos e inextricáveis eram estes laços que se poderia dizer, sem exagero, que constituíam uma só ciência estudada sob sete aspectos diferentes, se tornando representativa não tão somente em cada uma de suas partes isoladas como também na estrutura do seu conjunto. 

Podemos perceber também uma coisa muito mais interessante: no contexto das Artes Liberais, o conhecimento da linguagem (representado pelas disciplinas do trivium) antepunha-se ao conhecimento das coisas existentes (representado pelas disciplinas do quadrivium), estipulando uma seqüência ordenada que fazia da linguagem e das letras a introdução necessária para o conhecimento da realidade e da natureza. O que nos parece, pelo menos, sensato: afinal, se não conhecemos o instrumento que nos torna possível o conhecimento - a inteligência - como poderíamos nos certificar dos seus resultados quando ela penetrasse nos domínios da natureza? 
Vemos, assim, que as disciplinas do trivium e do quadrivium pontuam uma diferença de planos existente entre a dimensão cognitiva individual e a dimensão do real - bem como uma diferença de plano muito mais complexa existente entre estas dimensões para com uma outra dimensão: a metafísica ou sobrenatural(3). A passagem de uma destas dimensões para a outra equivaleria a um salto de planos que pode ser encarado como uma verdadeira transcendência, a ser realizada pelo indivíduo humano. A divisão das Artes Liberais em trivium e quadrivium expressa, pois, uma distinção de planos: 
1. de um lado, as estruturas e as leis da cognição individual; 
2. de outro, as estruturas e as leis da natureza sensível; 
3. e, para além destas dimensões, as Estruturas e as Leis Maiores nas quais estas se fundamentam e   encontram um sentido, revelando os “laços de correspondências” que as igualam e as unem e que dissolvem todas as diferenças existentes. É claro que a relação entre estas não é direta e explícita e só pode ser mediada pelo ser humano. Este é, afinal, o sentido presente em qualquer cosmovisão tradicional. Na cosmovisão grega, por exemplo(4), reconhecemos as seguintes dimensões: 

1. Ethos, correspondendo ao mundo humano de indecisão e liberdade relativa; 
2. Physis, correspondendo à ordem repetitiva e mecânica da natureza sensível; 
3. Logos, correspondendo à esfera absoluta dos princípios metafísicos. 

Com isto, reencontramos dois temas que tradicionalmente se repetem no meio astrológico, muito embora esvaziado do seu verdadeiro significado: o do Homem como mediador entre o Céu e a Terra, e o das correspondências entre ditos “planos superiores e inferiores”. Somente considerando o conhecimento e a cosmovisão tradicionais é que conseguiremos compreender que a ciência da natureza não estava voltada fundamentalmente para o aspecto sensível das coisas mas, sim, que cumpria a tarefa de levar o homem desde o conhecimento sensível até a esfera dos supremos princípios metafísicos. O conhecimento da natureza valia sobretudo pelas suas reverberações simbólicas, pelo vislumbre que podia dar de um plano superior, isto é, de uma dimensão metafísica ou sobrenatural. A totalidade da natureza sideral configurava uma zona de indeterminação e era considerada como um mundo intermediário, área de transição entre :



Outra coisa a se observar: na estrutura das Artes Liberais, o domínio da linguagem e do pensamento era representado por 3 disciplinas, enquanto que o domínio das coisas e da realidade era representado por 4 disciplinas - e 3 x 4 = 12. Doze eram, portanto, as “possibilidades” entre a palavra e a coisa, entre o fenômeno e o significado do fenômeno, entre a realidade sensível e a inteligível. A astrologia, assim, não era mais do que um mapeamento e uma sistematização dessa atividade de mediação que é própria do homem em estabelecer a conexão entre a realidade sensível e certos princípios metafísicos.

Fonte:  EDIL CARVALHO - astrocaracterólogo  



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